Coração na boca

Coração na boca
(poesia)
Editora Sette Letras_Brasil
1999
alguns poemas
DIÁRIO
Festa de casamento,
lugar para se ter cuidado.
Na cadeira em frente ao altar,
meu coração mecânico
maltratado pela cena romântica.
“Tudo são rosas”.
Para mim, sempre foi floresta.
Dentro, selvageria.
Flores?
De vez em quando ganho buquês.
Todo dia,
cruzo é com planta rasteira,
maria-sem-vergonha, bananeira.
Isso quando muito.
Geralmente é deserto
que atravesso toda manhã
no caminho da cama até o banheiro.
Minha ilha ainda úmida,
fria do orvalho interior.
AH
Delicada violência
do gozo:
nem vida
nem morte,
suspensão.
Nesse hiato silencioso,
teto preto,
tocamos o inefável.
Encostamos nos pés de Deus
para depois cairmos na cama,
exaustos
de tanta amplidão.
Olho para o lado,
corpo ainda trêmulo,
e observo meu coração deitado nu.
BACON
Chega a dar tonturas,
tamanho o abismo.
O natural é isso:
distorção e borrão
na realidade plácida.
Sentado, pernas cruzadas,
sempre enquadrado,
em decomposição contínua.
O homem em frente à TV,
o jornal no chão.
Sem a loucura que o salvaria
de empalhar a si mesmo.
É então continuar o jantar
e limpar da boca o que escorreu.
Ser
urubu da própria vida,
comendo de si mesmo o umbigo,
cuspindo o que é osso para o cão.
Saída nenhuma.